O primeiro bastidor
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Um dos primeiros contatos que tive com o cordel foi em uma reportagem que escrevi em novembro do ano passado para o Escritablog sobre um encontro entre Moreira de Acopiara e Glauco Mattoso, no Teatro Tuca, de São Paulo. O texto segue abaixo.

Hábil e cantábil
Fernanda Ortega
O preto e o branco podem se combinar harmonicamente, o democrata e o tirano, por vezes, enxergam as mesmas saídas, o bandido e mocinho sentem as mesmas dores, a feia é amada pelo belo. Pelo menos no mundo real, não existem oposições perfeitas. Os diferentes dialogam e se combinam em antíteses e sínteses. A relação entre o erudito poeta cego Glauco Mattoso e o popular cordelista Moreira de Acopiara faz desmoronar as supostas e antigas oposições entre o erudito e o popular. Foi isso que o encontro dessas duas figuras mostrou no Teatro Tuca, de São Paulo, no dia 19 de outubro.
As convergências aparecem rápido, pois nada melhor do que chamar um poeta cego e um cordelista para um evento organizado pelo Centro de Oralidade da Semiótica – ministrado pela professora Jerusa Pires Ferreira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP): ambos são marcados fundamentalmente pela linguagem oral. Se, de um lado, o cego escreve falando, de outro, o cordel é para ser lido sempre em voz alta. O encontro foi batizado por Glauco Mattoso de “Hábil e Cantábil”, pois, segundo ele, os dois têm habilidade em fazer poemas ritmados.
Mattoso é poeta, ficcionista, cronista e colunista. E é cego, mas enxerga muitas nuances que muita gente não vê. Com boina e óculos escuros, ele fala sobre sua escrita de maneira firme, decidida, qualificando suas influências e tendências. Hoje, ele é um dos maiores sonetistas brasileiros e já atingiu o recorde de cinco mil sonetos escritos. Mas, há cerca de 20 anos, antes de ficar cego, Mattoso brincava com imagens e com a diagramação das palavras, ele era um poeta concretista. Há cerca de dez anos, ele também chegou a convidar ícones da música popular brasileira para musicar os seus versos. Itamar Assumpção* e Arnaldo Antunes* foram dois que caíram na graça do poeta. Urbano, paulistano e com 60 anos completos, Mattoso, apesar das diferentes fases, nunca abandonou temas polêmicos e transgressivos. Violência, sexo, repugnância e discriminação são questões de que ele não tem qualquer receio de abordar com humor. Suas sátiras obscenas lhe conferem a reputação de “poeta maldito”, mas para ele: “o proibido aguça o dente”.
Soneto Histórico – Glauco MattosoOuvi que o pé que tenho procurado,
com seu dedão mais curto que o segundo,
já foi muito comum no Antigo Mundo
e “egípcio” seu formato hoje é chamado.
Lhes digo sem temor de estar errado:
o pé do brasileiro é vagabundo.
E quando nesse assunto me aprofundo,
constato que não passo dum coitado.
Quem foi que me mandou ser fetichista,
se o pé mais à mão nunca me contenta?
O jeito é elementar: eu que desista da estética,
que nada representa.
Além do mais, quem já perdeu a vista
que lamba um tênis número cinquenta!
Já Acopiara vem lá do sertão, de uma cidade pequena e muito pobre do interior do Ceará, que não tem energia elétrica até hoje. Veio para São Paulo jovem trabalhar em subempregos quando seu pai morreu. Mas, ainda no sertão, aos 13 anos de idade, Acopiara já rabiscava seus primeiros versos. Com um sotaque cearense marcante e delicioso, ele diz: “Mamãe alfabetizou uma sala de aula formada por seus nove filhos. Ela comprava muitos livros e eu fui ganhando gostinho pela coisa.” Ainda adolescente, teve a petulância de datilografar dois de seus poemas e entregar para Patativa do Assaré, uma das figuras mais importantes da música e poesia nordestina. Patativa os leu e disse: “seus versos são muito ruins, mas estão acima da média para um jovem da sua idade. Se você continuar lendo muito, quem sabe daqui a uns vinte anos você não se torna um grande escritor?” Passados mais de vinte anos, hoje Acopiara tem alguns livros e mais de 160 cordéis publicados, sendo considerado um dos grandes cordelistas da atualidade.
Trecho do cordel:
Ser Poeta Popular – Moreira de Acopiara
Ser poeta popular
É percorrer longa estrada.
É fazer do tempo escada,
E dela não se esquivar.
É conseguir melhorar
A vida de um companheiro,
É construir um roteiro
Sem prejudicar ninguém,
É ver a face do bem
Na solidão de um terreiro
É viajar todo dia
Nas asas da liberdade,
É ter criatividade
Para falar de alegria.
É buscar sabedoria,
É defender os direitos,
É ver como são perfeitos
Os muitos grãos de uma espiga,
É ter sempre mão amiga,
Sem enaltecer seus feitos.
Há alguns anos, em um dia paulistano de outono, Acopiara recebeu uma ligação da rádio Jovem Pan pedindo que ele declamasse um cordel ao vivo. Ele perguntou: “Agora?” E responderam “Neste instante!”. De improviso por telefone, todo atrapalhado, Acopiara recitou os versos do cordel “Eu me orgulho de ser um nordestino”. Do outro lado da cidade de São Paulo, Mattoso escutou pela primeira vez o nome de Acopiara e gostou do cordel que ouviu. Ele enviou um e-mail para o cordelista e os dois começaram a conversar.
Trecho do cordel:
Eu me orgulho de ser nordestino Moreira de Acopiara
Pelo rei do baião Luiz Gonzaga
Pelo líder Antonio Conselheiro
Por Antônio Silvino e sua saga
Pela muita coragem do Vaqueiro
Pelo canto dos bons Aboiadores
Pelos versos dos nossos cantadores
Pelo faro do Bravo Virgulino
Pelas festas de reis, literatura
Mamulengo, cordel, xilogravura
Eu me orgulho de ser um nordestino.
Após algum tempo, em 2007, Acopiara ─ o popular ─ e Mattoso ─ o erudito ─ fizeram um projeto juntos chamado “Peleja de Glauco Mattoso com Moreira de Acopiara”, que, basicamente, é uma conversa em forma de cordel. No processo de confecção, Mattoso enviava alguns versos ao colega, que respondia com outros versos, dando continuidade à rima anterior e à metrificação. De um lado, Mattoso interpreta um personagem masoquista, de outro, Acopiara assume um papel de homem valente. A “Peleja” começa assim:
Glauco Mattoso [25/9/2007]
Vamos lá, mestre Moreira!
Já que havia me proposto,
topo entrar na brincadeira
e à peleja estou disposto,
mas desde que você queira
pisar mesmo no meu rosto!
Moreira de Acopiara [25/9/2007]
Sou um sujeito disposto,
nascido num chão silvestre;
meus versos são de bom gosto,
mas têm formato rupestre,
carrego um riso no rosto,
Mattoso, mas não sou mestre.
Para os antigos tratadistas, ter tempo para retocar a métrica e trocar uma rima aqui ou ali era o que diferenciava a poesia erudita da popular. Por isso, a erudita seria mais qualificada. No entanto, para Mattoso, com a velocidade dos dias atuais, não é mais possível se dar ao luxo de guardar poemas eternamente na gaveta para consertar versos quando convém. Com isso, o erudito tornou-se mais próximo do popular e o cordel também ficou mais qualificado.
Soneto 225 – Inexorável Glauco Mattoso
Beleza na mulher chega a ser chata,
de tão obrigatória que se faz.
Perfídia não lhe fica nada atrás,
pois quanto mais bonita mais ingrata.
O jovem julga a pérfida uma gata,
mas ela acha um cachorro seu rapaz.
Contudo, o tempo nunca a deixa em paz,
e a face da velhice já tem data.
Ser feio é mais vantagem. Quem o é
já fica como todos vão ficar:
a cara, velha ou não, do jacaré.
A bela, se tiver nariz no ar,
um dia vê no espelho um lheguelhé.
Só resta-lhe a vassoura pra voar.
Se Mattoso escreve sonetos batucando na mesa para sentir o ritmo da cada verso ─ tum tum turu tum tum tum tum tum ─, Acopiara diz que a metrificação é como um vício do qual ele não consegue se livrar. O ritmo do verso decassílabo, ou da redondilha menor, está nas suas entranhas. Ambos os escritores consideram que, se um poeta não coloca a tônica no lugar certo do verso, ele fica desqualificado. Mantendo as antigas exigências ─ como a métrica, a rima e o conteúdo ─, o cordel vivencia hoje um processo de transformação. Segundo Mattoso, é possível, inclusive, dizer que há um neocordelismo. O cordel sofre as influências da evolução gráfica e da cultura de massa e, da mesma forma como entrou em cena a guitarra elétrica na música popular brasileira nos anos 60, há cordelistas inserindo Bob Dylan e o rock em seus versos. Em consonância, gerações e gerações de poetas do século XX, e agora do século XXI com Mattoso, fizeram e fazem o mesmo em seus versos, inserindo temas impossíveis para os poetas clássicos.
O diálogo entre Mattoso e Acopiara compõe novas possibilidades para a poesia atual. Eruditos ou populares, poetas ou cordelistas, devem existir muitos outros Acopiaras e Mattosos perdidos nos cantos diversos do sertão ou achados na cidade pelas editoras. Só resta esperar que eles se encontrem.
*Itamar Assumpção (http://www.youtube.com/watch?v=KY_ABYXYd3M) *ArnaldoAntunes (http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=e9BFCvm6BQM)
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